Em 10 de maio de 1933, os estudantes alemães organizaram um “ato contra o espírito não alemão” em 19 cidades universitárias do país. Compilaram uma lista de livros “não alemães”, pegaram-nos em todas as bibliotecas que conseguiram encontrar, amontoaram-nos em praças públicas e atearam fogo. O evento da queima de livros em Berlim teve a presença de Joseph Goebbels a pedido dos estudantes. Ele disse que os estudantes estavam “fazendo a coisa certa ao entregar o espírito maligno do passado às chamas” no que chamou de “ato forte, grandioso e simbólico”.88 Um após outro, os livros foram lançados na pira funeral do intelecto, acompanhados Mapa 18. As universidades alemãs em 1933 por slogans como: “Contra a luta de classes e o materialismo, pela comunidade nacional e por um ponto de vista idealista: Marx, Kautsky ; Contra a decadência e o declínio moral, pela disciplina e moralidade na família e no estado: Heinrich Mann, Ernst Glaeser, Erich Kästner”. As obras de Freud foram confiadas às chamas por seu “exagero degradante da natureza animal do homem”, os livros do popular historiador e biógrafo Emil Ludwig foram queimados pela “difamação” de “grandes personalidades” da história alemã; os escritos dos jornalistas pacifistas radicais Kurt Tucholsky e Carl von Ossietzky foram destruídos por sua “arrogância e presunção”. Uma categoria particular foi reservada a Erich Maria Remarque, cujo romance crítico Nada de novo no front foi lançado na fogueira “contra a traição literária dos soldados da Guerra Mundial, pela educação da nação no espírito do preparo militar”. Muitos outros livros além desses citados em voz alta nos slogans encantatórios foram lançados às piras. A organização nacional dos estudantes emitiu “12 teses contra o espírito não alemão” para acompanhar a ação, exigindo a introdução da censura e expurgo das bibliotecas e declarando: “Nosso oponente é o judeu e qualquer um que se submeta a ele”.
Em 12 de março, num prelúdio a essa ação, tropas de assalto já haviam revistado a biblioteca do centro sindical em Heidelberg, retirado livros e queimado-os em uma pequena fogueira diante da porta. Evento semelhante havia ocorrido, como vimos, diante do instituto de pesquisas sobre sexo de Magnus Hirschfeld em Berlim a 6 de maio. Mas a queima de livros de 10 de maio foi em escala muito maior, e muito mais meticulosamente preparada. Os estudantes vinham vasculhando bibliotecas e livrarias desde meados de abril, preparando-se para a ocasião. Alguns livreiros recusaram-se corajosamente a pendurar pôsteres anunciando o evento em suas vitrinas, mas muitos outros cederam às ameaças com que os estudantes acompanharam a ação. Em Heidelberg, onde a queima de livros ocorreu em 17 de maio, os estudantes fizeram uma passeata com tochas, acompanhados de homens da SS, Capacetes de Aço e grupos de duelo, e jogaram insígnias comunistas e social-democratas às chamas, bem como livros. O evento foi acompanhado com os nazistas cantando a Canção de Horst Wessel e o hino nacional. Foram proferidos discursos nos quais a ação era apresentada como um golpe contra o “espírito não alemão” representado por escritores como Emil Julius Gumbel, o estatístico dos assassinatos de direita nos anos de Weimar, escorraçado de sua cadeira na universidade no verão de 1932. A República de Weimar havia incorporado o espírito “judeu subversivo”; ele agora finalmente era despachado para a história.
Tudo isso marcou o auge de uma ação generalizada “contra o espírito não alemão” colocada em andamento semanas antes pelo Ministério da Propaganda. Como é muito frequente na história do Terceiro Reich, a ação aparentemente espontânea de fato teve coordenação central, embora não de Goebbels, mas da união nacional dos estudantes. O funcionário nazista encarregado do expurgo das bibliotecas públicas de Berlim forneceu prestativamente uma lista dos livros a serem queimados, e o escritório central da união nacional dos estudantes redigiu e distribuiu os slogans a serem usados na cerimônia. Dessa forma, a organização estudantil nazista assegurou-se de que a queima de livros transcorresse de modo bem semelhante em todas as cidades universitárias onde foi executada. E outros alemães seguiram o exemplo dos estudantes em localidades por todo o país. Em uma celebração do solstício de verão na aldeiazinha de Neu-Isenburg em 1933, por exemplo, uma grande multidão viu literatura “marxista” ser queimada em uma enorme pilha numa área ao ar livre atrás do posto de bombeiros. Enquanto o clube de ginástica feminino local dançava ao redor da fogueira, o líder local do Partido fez um discurso, seguido da interpretação da Canção de Horst Wessel pela multidão reunida. A queima de livros não foi de modo algum uma prática confinada aos círculos cultos.
A queima nazista de livros foi um eco consciente de um ritual anterior, protagonizado por estudantes nacionalistas radicais em 18 de outubro de 1817 em Wartburg, na Turíngia, na celebração do 300º aniversário do lançamento da Reforma de Martinho Lutero pela publicação de suas teses atacando a Igreja Católica. No encerramento das festividades do dia, os estudantes lançaram símbolos de autoridade e livros “não alemães” como o Código de Napoleão na fogueira, em uma forma de execução simbólica. Essa ação pode ter proporcionado um precedente no cânone de manifestações tradicionalistas da Alemanha, mas de fato tinha pouco em comum com a imitação mais recente de 1933, visto que uma preocupação principal do Festival de Wartburg era expressar solidariedade com a Polônia e se manifestar em favor da liberdade de imprensa alemã, coagida por censura maciça do regime policial inspirado pelo príncipe Metternich. Ainda assim, enquanto as chamas elevavam-se aos céus de antigos centros de conhecimento da Alemanha em 10 de maio de 1933, encorajadas ou toleradas pelas autoridades universitárias recém-nazificadas, deve ter havido mais do que um punhado de pessoas que se lembraram do comentário do poeta Heinrich Heine sobre o evento anterior, mais de um século antes: “Onde se queimam livros, no fim as pessoas também serão queimadas” (Evans, Richard J. A chegada do Terceiro Reich / – São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2010)
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